sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Riscos da intolerância religiosa



Aloísio de Toledo César







Há alguns anos elegeu-se presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo um deputado estadual evangélico. Seu primeiro ato foi de intolerância religiosa: sem um mínimo respeito pelo sentimento de fé das demais pessoas, retirou do plenário a imagem de Cristo, que ali estava desde a inauguração do prédio. A reação de inconformismo dos demais deputados, como também de alguns milhões de brasileiros feridos no seu sentimento religioso, desaguou numa demanda judicial, que só terminou quando o referido deputado deixou a presidência da Assembleia e a imagem de Cristo voltou ao plenário. Pouco tempo depois, um pastor do mesmo credo, durante programa de televisão, começou a dar chutes na imagem de Nossa Senhora Aparecida, com o propósito de demonstrar a sua inexistência e que nada lhe aconteceria se assim agisse. Agora, quem sabe movido pela mesma e lamentável intolerância religiosa, um promotor de Justiça ingressou com ação judicial por meio da qual pretende retirar de todas as repartições públicas de São Paulo as imagens de Cristo ali presentes, algumas já há mais de um século. O sentimento religioso é de ordem subjetiva e varia de indivíduo para indivíduo. Seja qual for a preferência externada, quer majoritária, quer minoritária, deve sempre ser respeitada. O desrespeito leva ao radicalismo e este, todos nós temos visto, conduz a ações violentas, que servem apenas para tirar a vida de pessoas e tornar sangrentas as diferenças religiosas. Um dos argumentos utilizados para justificar a ação é o de que as pessoas não-católicas podem sentir-se constrangidas com a imagem de Cristo em repartições e que o Estado não deve sofrer influência da religião. É o velho princípio do Estado laico. Nunca se teve notícia de que um imposto tenha sido ou deixado de ser cobrado em função da presença de Cristo na repartição ou de que um réu tenha sido ou não condenado nos tribunais por sua influência. A imagem de Cristo exprime sentimento religioso dominante há mais de 2 mil anos e faz parte de tradição merecedora de respeito. Sua retirada, na forma pretendida, poderia ter como consequência o início de indesejável radicalismo religioso, nunca registrado anteriormente. Acentuar diferenças entre católicos e não-católicos pode levar a algo imprevisível e perigoso, enfim, reflete ação impensada, juvenil e, sobretudo, tola. A primeira Constituição brasileira, datada de 25 de março de 1824, considerava a pessoa do imperador inviolável e sagrada, além de não estar sujeito a responsabilidade alguma. Ao assumir o cargo, o imperador deveria fazer um juramento que começava assim: "Juro manter a Religião Catholica Apostólica Romana..." Assim deveria ser porque a Constituição dizia, no seu artigo 5º: "A Religião Catholica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império..." Vê-se o predomínio, naquela época, de uma única religião junto ao Estado. Mas, com a Constituição de 24 de fevereiro de 1891, que já tinha o dedo de Ruy Barbosa, a liberdade religiosa foi reconhecida e desvinculada do Estado, reconhecendo-se a todas as igrejas personalidade jurídica, permitindo aquisição de bens e sua administração. O artigo 7º foi bem claro: "Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção official, nem terá relações de dependência com o Governo da União ou dos Estados." E ainda: "A representação diplomática do Brasil junto à Santa Sé não implica violação deste princípio." Esse princípio foi reproduzido na Constituição de 1934 e nas que se seguiram, ficando, de lá para cá, livre e desvinculado do Estado qualquer culto ou religião. Isso equivale a dizer que todas as preferências religiosas podem ser externadas e que não se confundem religião e Estado. O direito de credo está expresso na Carta Magna, mas, insisto, a liberdade religiosa não pode ser confundida com o desrespeito de uma religião em relação a outra. A intolerância leva ao fanatismo e por isso mesmo não se pode admiti-la. Fundado numa tradição milenar, que está nas raízes de nosso país, o cristianismo se fez sentir em inúmeras repartições públicas, com a fixação da imagem de Cristo nas paredes de salões nobres, tribunais e até mesmo simples repartições públicas. Tentar tirá-las seria o mesmo que fazer católicos passarem a dar chutes nas igrejas evangélicas por não adotarem esse símbolo de fé. É algo claramente incendiário, além de pouco inteligente. Tal intolerância é surpreendente e ocorre no momento em que surge em São Paulo um movimento antagônico, de plena integração de todas as religiões. Realmente, sob a inspiração de um ensinamento de Mahatma Gandhi, o de que política e religião podem caminhar juntas, foi criado no Auditório Franco Montoro da Assembleia Legislativa de São Paulo o Instituto Mahatma Gandhi, que reuniu, de forma inédita, os representantes de 15 diferentes doutrinas religiosas, entre eles judeus, maometanos, budistas, umbandistas e outros, e até mesmo da Ordem dos Advogados. Seu objetivo é atuar para maior compreensão entre as diferentes doutrinas e programar ação política conjunta em favor de todas. Um exemplo citado de benefício coletivo foi a lei, de autoria do deputado Campos Machado, que permite aos religiosos que guardam o sábado fazer provas de concursos públicos após as 18 horas ou no dia seguinte. Busca, enfim, que as diferentes religiões, com suas particularidades e dificuldades próprias, se compreendam e atuem conjuntamente perante o Estado. É o contrário do que se pretende fazer com a imagem de Cristo nas repartições. Aloísio de Toledo César é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. E-mail: aloisioparana@ip2.com.br

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